sábado, 1 de junho de 2013

Resenha: “Memória para uso diário”



"Memória para uso diário" é um filme de Beth Formaggini (Brasil, 2007), que documenta a luta do  grupo "Tortura nunca mais" a partir de nomes comuns (Ivanilda, Romildo, Tania Roque, etc;)  que, apesar das memórias traumáticas fazem questão  que  suas  histórias e dos seus parentes desaparecidos , mais do que lembradas,  sejam  legitimadas. O filme foi contemplado por diversos prêmios no Brasil e no Exterior, tais como de Melhor Longa Documentário – Voto Popular (2007),
Ivanilda é o fio condutor do documentário. Militante do grupo "Tortura Nunca Mais", busca evidências que comprovem que seu marido Itair José Veloso, desaparecido desde 1975, foi preso pelo governo brasileiro. Esta percorre os arquivos da cidade do Rio de Janeiro para tentar encontrar algum indício da passagem de Sr Itair pelas prisões da Ditadura.  Cecília Coimbra e Flora discorrem sobre sua militância política, suas experiências na clandestinidade; sobre a prisão de Cecília e a fuga de Flora para o exílio; assim como, no filme há cenas encantadoras do leve manusear de velhos jornais pelas mãos das ex-militantes, Lola e Cléa, que trazem á tona recortes da história oficial em cima de uma memória política.  As falas se misturam às ações de militantes e parentes das vítimas da ditadura que reconstroem suas histórias pelas ruas e cemitérios clandestinos do Rio de Janeiro.
"Memória para uso diário" é um documentário sobre o reflexo da tortura dos anos da Ditadura Militar (1964/1985) que ainda hoje atinge o cotidiano das famílias que não tiveram a chance de enterrar seus parentes desaparecidos.  É também uma denúncia sobre as mães que choram pelos seus filhos, assassinados pela polícia nas favelas, pelas vítimas das chacinas que rotineiramente ocorrem nos  morros e nos bairros populares.
Diante da dor das famílias de vítimas das torturas expostas no documentário, e no lugar de estudantes do primeiro semestre de Psicologia esta resenha analisará o papel e o compromisso da Psicologia como ciência neste cenário e contexto histórico-social. É nítido que no período da ditadura havia uma tentativa por parte do Estado de anular a subjetividade psicológica do preso, considerado “terrorista”, através da tortura. Há uma relação, abordada no documentário, com a violação dos direitos humanos nas periferias do Brasil, nas quais jovens são mortos por serem confundidos com traficantes. Até mesmo se fossem traficantes deveriam ser julgados pela força da Lei e não serem “apagados” através de uma justiça paralela.
Na história da Psicologia no Brasil nos anos 60 e 70 depara-se com a existência de um movimento no sentido de oficializar a profissão do Psicólogo. Neste pretendia-se traçar os limites de atuação, definindo os espaços específicos da Psicologia. Esse movimento culminou na formalização da lei 4.119 que regulamentou a profissão no ano de 1962. Quando formalizada a profissão já existiam diversos psicólogos atuando em instituições, mas o trabalho em consultórios era restrito.  
 As conquistas da Psicologia viriam logo a serem significativamente retardadas com o Golpe Militar de 1964 e a instalação no país de um regime repressivo, exercendo grande controle sobre os movimentos organizados então existentes. A relação da Psicologia com a sociedade restringiu-se ao desenvolvimento de técnicas que possibilitassem a penetração em diversos grupos sociais, com o fim único de seduzí-los para a prática do Estado.
Na lei encontram-se aspectos de caráter normalizador sobre as funções privativas do psicólogo, como no artigo 13, no qual constam quatro itens: diagnóstico psicológico, orientação psicopedagógica, orientação e seleção profissional. Na alínea d: solucionar problemas de ajustamento. Assim, na Lei, está prevista a ação do Psicólogo enquanto normalizadora do comportamento. Ele deve solucionar os problemas de desvio e ajustar o sujeito, o grupo, a coletividade, num determinado padrão de uma suposta normalidade. Na lei fica explícito tal caráter normalizador da profissão do Psicólogo, que funciona como um mecanismo disciplinar e que produz um padrão de normalidade, ditado pelos padrões dos grupos sociais dominantes.
Diante do exposto, percebe-se que a Psicologia no Brasil, em sua gênese, esteve a serviço do Estado como um instrumento de manipulação de massas e com uma prática perpetuadora das relações de poder instituídas no país. 
Qual o tributo atribuído à psicologia diante das torturas na Ditadura Militar?
Considera-se que realizar um histórico das práticas políticas exercidas no país durante o Regime Militar aliadas ao papel da Psicologia neste contexto é poder desvelar o que está encoberto sob o discurso oficial e instituído.  A história mostra que a Psicologia foi neste momento utilizada com o fim de dominação-doutrinação, onde os saberes psicológicos estavam em conformidade com os interesses do Estado, e atestavam que o movimento dos militantes políticos derivava-se de uma patologia psíquica para assim deslegitimar o movimento popular. A Psicologia prossegue como sendo um instrumento de normalização social, que junto com o Estado instituiu o terror e conseqüentemente a dor de que fala o documentário em questão.
Resta a reflexão sobre o sentido dos saberes e práticas psicológicas nos atuais dias. A circulação das ideias na forma de uma reflexão mais fecunda sobre a prática da Psicologia sofria sérias restrições e retaliações. Isso explica, mas não justifica a posição dos psicólogos no regime da Ditadura militar, que emitiam laudos atestando que os militantes dos movimentos contra o Governo representavam uma “ameaça à ordem” e “eram inimigos da Pátria”.
Uma discussão proveitosa se dá no sentido de repensar os fundamentos ideológicos e sócio-políticos de rever a atuação da Psicologia e da produção de um saber relevante onde se privilegie minorar o sofrimento psíquico e criar condições para o desenvolvimento de um sujeito social consciente, autônomo e crítico.  A Psicologia deve ter um caráter tão somente emancipador e contributivo para o progresso da sociedade, dos sujeitos e da coletividade.

REFERÊNCIAS
Ventura, Zuenir. 1968: O ano que não terminou - Rio de Janeiro. Nova Fronteira,1988.
Vozes. Editora Vozes Ltda. Brasil nunca mais. Petrópolis-RJ 1985.
Foucault, M. (1984). Vigiar e punir. Petrópolis, RJ: Vozes.
Macedo, J. R., & Maestri, M. (2004). Belo Monte: uma história da guerra de canudos. São Paulo: Expressão Popular. PSICOLOGIA USP, São Paulo, 2012, 23(1),
Hur, D. U. (2005). Políticas da Psicologia de São Paulo: as entidades de classe durante o período do regime militar à redemocratização do país. Dissertação de Mestrado, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.

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